domingo, 29 de dezembro de 2013

FINAL

Foto de Sebastião Salgado



Vim de uma batalha. Sentada agora diante da água azul da piscina pouco se vê dos rastros da agonia, o rosto banhado de brasas, as penas que arrancadas de mim levaram minha leveza.
Os pés alquebrados, o olhar perdido, as nuvens cobrindo o tempo e se movendo na distância são traços espalhados na tela, vestígios de uma escuridão.
Eu estou sentada numa palavra que apenas eu posso escutar. Ela vem abafada, às vezes gritando. Não a compreendo bem, prefiro escondê-la, encobri-la com meus olhos fechados ou com a toalha úmida.
Eu vim de um campo de batalha.
Eu empunhei espadas.
Eu defendi os meus.
Agora na placidez solitária desse lago deixo meus despojos, dispo meu corpo, mostro minhas feridas abertas e as cicatrizes lavradas a mim própria.
Aos poucos sinto na pele a chuva que se liberta do céu e eriça os pelos de toda a líquida superfície.




domingo, 22 de dezembro de 2013

UMA ASA OU UMA CAIXA

Fotografia de Max Dupain



Como uma oração feita em silêncio, num canto escuro do quarto de olhos fechados mirando um infinito cheio de nuvens brancas e de marulho do mar, sou eu quem me traio todas as vezes. Considero que as paredes não têm buracos perfeitos porque mal dá para ver o outro lado.
Estou ficando cego, uma luz fina se move rapidamente de um lado para o outro. O aroma doce, o toque áspero, o barulho perturbador dos carros que vêm de fora são como aquela luz vindo de uma direção oposta à qualquer premonição.
As sensações vêm do nada rumo ao vazio inexplicável.
Logo eu que aprendi a ver com o corpo inteiro estou nu, recitando um poema de olhos fechados.

  

Pedem-me um poema
um poema que seja inédito,
poema é coisa que se faz vendo,
como imaginar Picasso cego?

Um poema se faz se vendo,
um poema se faz para a vista,
como fazer o poema ditado
sem vê-lo na folha inescrita?

Poema é composição,
mesmo da coisa vivida,
um poema é o que se arruma,
dentro da desarrumada vida.

Por exemplo, é como um rio,
por exemplo, um Capibaribe,
em suas margens domado
para chegar ao Recife.

Onde com o Beberibe,
com o Tejipió, Jaboatão
para fazer o Atlântico,
todos se juntam a mão.

Poema é coisa de ver,
é coisa sobre um espaço,
como se vê um Franz Weissman,
como não se ouve um quadrado.

Pedem-me um poema - JOÃO CABRAL DE MELO NETO



No sé cuál es la cara que me mira
cuando miro la cara del espejo;
no sé qué anciano acecha en su reflejo
con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro
mis invisibles rasgos. Un destello
me alcanza. He vislumbrado tu cabello
que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente
la vana superficie de las cosas.
El consuelo es de Milton y es valiente,

Pero pienso en las letras y en las rosas.
Pienso que si pudiera ver mi cara
sabría quién soy en esta tarde rara.

Un ciego - JORGE LUIS BORGES



sábado, 7 de dezembro de 2013

POR OUTRAS MANEIRAS DE SOMBREAR O TEMPO

Foto de Ben Zank



De quem é essa palavra? Minha?
E quantas vezes eu tenho que dobrar palavra para que seja tua?

Onde a resposta?
Estará nas folhas da bananeira ou na margem que anda?
Ela será menos minha na boca de outro? Ou será serenamente minha migrando para outras canções, atirando-se em outras bocas, mastigando outras salivas?

E se eu for apenas um detalhe que se descortina na ponta de lá
(bem grande)
Mas insignificante para quem está na ponta de cá
(mínimo)?

Um dia próximo vou sair pela porta
Sentir beleza respirar fumaça
e nesse dia serei pleno
como muda palavra.


sábado, 30 de novembro de 2013

EU UM AVESSO

Itamar Assumpção



Um dia eu vou contar a história desse encontro, das conversas longas, da raridade escorrendo pela mesa, dos teus olhos de águia no palco cantando as minhas medalhas sobre o peito.
Eu falo dos teus cabelos, e eu lembro.
Eu falo dos teus olhos fartos, e eu lembro.
Toda aquela imponente alucinação era uma forma de grandeza, uma impressionante forma delicada pressionando a minha pele, envolvendo a tua língua num espetáculo que em uma hora esvaziará o mundo para passar o corpo, para deixar o corpo passar, para escrever ininteligível.
Uma linguagem manchada de sangue e de pus é o que precisamos comer no chá das cinco e provavelmente esse chá já foi servido em becos e inundações.


Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Ela é tudo que me sobra
Viver vai ser a nossa última obra

Composição: Itamar Assumpção e Paulo Leminski





domingo, 24 de novembro de 2013

A NECESSIDADE SUTIL DA MORTE


Imagem do documentário "Manifesto Macumbacyber"



A sabedoria está na cor dos olhos. Ele estava incapaz de discernir entre as sensações na pele por excesso de êxtase. Seria um final aparente de um aparente arfar contrito do peito.
Contemplou a sala vazia e a sua vida como se dera até ali, metade fosso, a outra metade as próprias divagações – transporia o muro, seria algo mais profundo que o negro, tornaria-se uma profundidade torturante, inteiro.
Ele pouco a pouco se perdia, não reencontraria-se na senda, suavemente deposto, suavemente banido pela rosa e pela inclemência dos espinhos. A sala vazia, o mundo apagou-se, as cadeiras à frente estendidas num campo de vaidades sutil. Se levantaria e construiria o novo, o algo que se conjugasse às sensações de si pelo mover-se do momento - não, impossível seria erigir algo diferente, além do íntimo ser.
Estava cansado, e as sombras acentuavam ainda mais a aparência extenuada de seus vícios, paixões em pulsação plena pelo corpo, prazeres confundidos com as intermitências do fosso. Estava ali como esteve em outros lugares de recordação hesitante, à beira de palpáveis horizontes, como fora anterior ao surgimento das hostes que o honrariam na batalha.
Era limitado, era repleto de curvas seu caráter, e a consciência do poder absoluto que aquela certeza possuía o impulsionava ao sangue derramado sobre as cadeiras próximas. Mas o imo líquido não sobressairia em contraste com a quantidade de cadeiras revestidas em couro negro, sua vida, sucessão interrompida de sentidos a espraiar-se.
Morreria, aos poucos e só, como numa câmara escura, abrangeria na proximidade daquela profecia todo o espaço num abraço inteiro de dúvida. Seu orgulho íntimo, poder morrer sangrando - finda a vida, findo o ar e o peso contido no ar -, aspirar o cheiro coagulado do vermelho. Ambição acima das outras, inclusive das que trouxera para compartilhar da fugacidade do minuto.
Preso ao movimento dos olhos voltados para o teto, o que restava ainda ser riscado? O que caberia de compreensível na imensidão tonitruante do universo? Possivelmente a noite era sustentáculo da sua necessidade inútil de ausências, fraternidade sensível entre ele e a una certeza presente na sala.
Amplo, de tonalidade soturna e incongruências várias, seu coração quase não aguenta mais - a calma. Logo virá um despertar.
Não, ele não poderia estar só. Agora, morto, na extensão da palma da mão um líquido viscoso, um escorrer sobre tudo, uma imensa visão.


Manifesto Macumbacyber


domingo, 17 de novembro de 2013

UMVAZIOCHEIODEPALAVRAS

Foto de Steve Mccurry



A criança brinca de chutar o pó, joga com uma potência desconhecida que flutua e se desfaz. Ela guarda nas mãos uma iluminescência que acende e volta a apagar-se sem motivo algum.
Ela está parada, corre, entra por uma porta, sai por outra porta, se esconde.
Um cachorro parado tem um olhar perdido para o nada como uma efígie.
Por uma árvore cinza o vento passa.
Em breve, uma prata fina escorrerá do céu e quebrará no asfalto.
Em breve, as grades serão corroídas pela ferrugem e a água cobrirá o mundo de lâmpadas trincadas e objetos perdidos.



domingo, 10 de novembro de 2013

ELA PASSOU PELO ESPELHO

Brillo Interno, de Cintia Fournier


Ela passou pelo espelho, arrumou o cabelo, desaprovou a blusa, mas o que fazer? Tinha que sair agora.
Ela passou pelo espelho, percebeu uma sombra nas rugas da testa e na marca dos olhos, arrumou a blusa, desaprovou o cabelo, mas o que fazer? Tinha que sair agora.
Ela passou pelo espelho, percebeu uma sombra no peito e a espalhou pelas marcas da testa e pelas rugas dos olhos, trocou a blusa, soltou o cabelo, mas o que fazer?
Sair agora.

domingo, 3 de novembro de 2013

FEITO PRA ACABAR

Foto de Limay Uribe Ruberti



Apareceste lendo Leminski numa tarde de sexta-feira. Meu Deus, quem lê Leminki num fim de tarde? Meu olhar subia e aos poucos deslizava por teu corpo parando ao seu bel-prazer aonde quisesse.
Te vi fechar o livro, a parada que desceste, perto de uma capela azul. Não guardei teu nome, não guardei tua língua, mas a tua presença em mim depois daquele doce cataclismo me intumesceu. Ficou inscrita na minha pele por dias e noites, que as boas intenções de nenhum matrimônio puderam apaziguar. 
Se vou te ver ao menos uma segunda vez?
Não sei se a tua presença será mais viva que as tuas mãos nas páginas de Leminski.


domingo, 27 de outubro de 2013

CASA VAZIA

Foto de Jimena Almarza



Um homem estava dentro de uma casa vazia. Dentro dela havia apenas um espelho.  Em frente da casa passava um rio turbulento de águas escuras. Ao redor se levantava uma grande floresta que cobria o céu.
O homem perguntou para o espelho: O que faço se não tenho para onde ir?
O espelho fez um rosto inquiridor e lhe respondeu: Por que não ficas e enche essa casa com a tua presença?
Porque os dias aqui são opressores, o homem falou. Então o espelho lhe disse: Se tu saires desse recinto a casa ficará, mas não retornarás a ela.
O homem que tinha todas as portas fechadas fez uma última pergunta ao espelho: Para onde retornarei se os animais da terra e do rio vierem sobre mim?
O espelho fechou os olhos e antes de responder a ausência já ocupava todo o espaço de sua moldura.



domingo, 20 de outubro de 2013

EM MEIO AO CORPO


Instalação Performativa "Corpo Sincrético"


Preparo-me para as águas grandes. Muito antes do que imaginei serei imersa em fogo líquido. O estágio de queima começou.
(Rosilene Cordeiro)

Eu pertenço a esse lugar.
Quantas linguagens escorrem da tua boca?
De todas elas eu prefiro teu claroescuro revelador, coberto de sementes.

Os tambores riscam a minha pele de danças, assovios e canto.

O meu corpo é teu
e meu
(Só então o sacrifício não será vão)

Dos meus olhos escorrerá o leite que inundará a nossa cama
Nossa cama, então, coberta de leite, nos cobrirá sem medo algum,
Como ao fim de tudo,
quando decido sair de nós
e tu me permites seguir pelo deserto, só.


domingo, 13 de outubro de 2013

TODO O RIO DESCOBRE UM PASSO


Foto de Alexandre Romariz Sequeira


(Caminha até a janela, enxerga no visitante uma parte de si, por isso fala)

Ando recolhendo lembranças como um desesperado procura a próprio rosto pendurado em paredes, no vidro de carros, em cacos mudos no chão.
Eu também tenho meus pesadelos e tenho tentado conviver com eles como qualquer outro. Às vezes acordo no meio da noite para ligar a luz do quarto.

(O som dos carros se adensa, o visitante pede uma água e se senta novamente)

Ando profetizando nas esquinas um novo horizonte, um outro olhar, mais limpo, uma possibilidade que reste. Escrevo cartas de amor sem muros para ti que me visita, mas se desfazem todas no teu olhar vadio e fugaz.
Esse poema é muito difícil? E se você não esperar entendê-lo, e se ele for um mergulho vertical dentro da tua própria vida?

(O visitante se inquieta, atravessa a parede e o deixa sozinho outra vez escutando a própria voz agora em pensamento)

Meu último poema provavelmente terá a cor das tuas águas, de um verde-claro selvagem. Mas nesse momento desenho os mapas da minha própria geografia, recompondo partes de mim que já nasceram dispersas no poente,
E ainda assim, nunca estarei inteiro.    


domingo, 29 de setembro de 2013

ABANDONO


Fotografia de Alastair Magnaldo


É hora de ir a um outro lugar feito de palavras macias e leves como um balão que fatalmente se dissipe em qualquer parte depois de fazer beleza nos olhos.
Um outro lugar onde a expressão no rosto tenha mais que ausências, seja um lance secreto de dados ou não, onde o sentido guardado permaneça raro e só eu e uns poucos condenados possam segurá-lo entre as duas mãos sem escorrer pelas fendas.
Nesse outro lugar o amplo campo de fora se confunde com o meu jardim que ainda é cheio de grades cobertas de era. 
Só então, livre de pesos, poderei respirar, por fim.




domingo, 8 de setembro de 2013

CONTEÚDOS REJEITADOS

Foto de Silvia Grav

Algumas pessoas estão sobrevivendo, vagando pelo mundo sem descobrir os próprios passos ou o som que produzem quando deixam marcas na areia.
Arnaldo é um homem como qualquer outro e um homem como poucos. Nele o vazio no peito se tornou mistério insone. Ele vive procurando essa cicatriz em certa parte do corpo, nas mãos, no peito, no rosto.
Ele está acordado. Nesse exato momento abriu os olhos e, cheio de fé, derrama o primeiro pé sobre o chão frio. Arnaldo sabe que está só, procura as sandálias.
A janela na frente parece pequena demais, vultos e silêncios se esgueiram na sombra. Ele toma o banho na cuia, serve-se do café preto, apanha a chave e esconde-se na luz. Está indo novamente ao encontro de mais um dia como uma presença que todos veem e ignoram.

domingo, 4 de agosto de 2013

UMA TARDE DE SOL

Fotografia de Hossein Zare



Está abafado. Abro a janela e tento sentir o vento. Não há muito espalhado por aí.
Estou tentando te tocar faz tempo. O que falta? Agora uma brisa passa de leve. Provavelmente eu vou sair essa noite, mas a porta continua fechada. Também estará fechada no dia seguinte.
Eu quero tocar o teu corpo. E estás perto, cada vez mais, tu sabes bem. As palavras abrasam por dentro até sair um líquido branco. Elas abrasam e secam ainda na tua boca, sem prolixidade.
Eu sigo igual, disperso, espalhado no improvável, buscando algo que pode ser você. Eu quero tocar o teu corpo outras vezes. E quem sabe, num desses dias tu não serás um ente separado, não mais um corpo apenas, pernas e braços consumarão a nossa identidade.
Fecho a janela, as persianas dobram sobre si mesmas, permaneço só, povoado de desconcerto.




domingo, 28 de julho de 2013

CRISÁLIDA

Fotografia de James Houston

A sua capacidade de regeneração era muito grande, regeneração pela dor. Às vezes isso lhe concedia um olhar de mármore, frio e pétreo. Passava por tudo, encontrava a saída de cada labirinto que guardava dentro. Quando não se deparava com o outro lado acendia uma fogueira e abraçava as próprias pernas, aninhando a si mesmo.
Era uma forma de atravessar a coragem, construir uma nova casa depois da onda azul que toca o céu. Um lugar diferente com as mesmas vigas, mas com tinta fresca nas paredes, novos móveis, outro teto.
Hora de partir, estava sempre partindo. Quem o visse agora não notaria diferença alguma, distraidamente atravessaria o sangue derramado, não veria os rastros de luta passando de largo pelos vestígios do último embate. Mas ele era aquilo, uma outra forma para manter-se vivo, uma carne pálida brotando de uma casca morta.  






domingo, 21 de julho de 2013

EVANESCENTE

Fotografia de Brian Oldhan



Não se deve jogar fora certas coisas. Algumas delas deve-se guardar para realizar a experiência de sentir um mesmo objeto adquirindo um novo significado. Me arrependo de ter jogado no lixo um livro que eu mesmo escrevi aos 10 anos. Agora tento tocar a memória com as mãos de um afogado. Não há um apoio firme, só existe um imenso espelho d’água que logo se desfaz. Eu lembro de uma presença triste, como cacos de vidro numa gaiola. Eu lembro de silêncio e solidão sobre a mesa. Eu leio uma carta abrasada num labirinto insolúvel.

Es un milagro que estés vivo.

Eu sei, minha cara, sigo sabendo.


domingo, 14 de julho de 2013

FORÇA OCULTA

Fotografia da serie Ashes and Snow de Gregory Colbert


Não é uma novidade que Raimundo Rodrigues, de quarenta e sete anos, esteja agora procurando a arma com a qual matará sua mulher daqui a trinta e nove minutos no salão onde ela trabalha há um pouco mais de dois quarteirões do quarto que alugou depois da separação.
“Ela não vai ficar com tudo, quem ela pensa que é?”- era a frase que pulava constantemente do oco de dentro da cabeça de Raimundo Rodrigues para a sua boca. “Ela havia ido longe demais”, era o que dizia. 
Eu explico o que aconteceu antes da história que irá se desenrolar. Depois da última agressão, a mulher sem nome de Raimundo Rodrigues, tonou-se a Maria Rita da ocorrência policial. Maria Rita viu seu nome pela primeira vez quando saiu da delegacia com o dente quebrado e com hematomas pelo braço e pelo rosto devido à última briga com o homem que acreditava que ela lhe pertencia como uma camisa velha e gasta que não se quer fora do armário.
Maria Rita já escuta seu nome e fala palavras belas como dia, lágrima e flor. Sua filha lhe fez um desenho novo: elas de mãos dadas sobre um risco azul, ao fundo, um círculo amarelo flutua.  
No salão ela conversa com as clientes, o galã da novela dá entrevista no programa da Fátima. Ela se aproxima da televisão, aumenta o volume, observa a funcionaria que trabalha ao seu lado e sorri.



domingo, 7 de julho de 2013

O TEMPLO REINVENTADO

Fotografia de Arash Ashkar

Todo, seus olhos, o concreto, ele próprio. Parte dele erigida na fuga encontraria por fim o seu repouso, a luz iniciou sua senda, ele penetrou no corredor num passo de leveza calculada, expectante, observando a fragilidade das paredes e a aparência circunspeta daquela superfície. As pessoas nas salas se foram com o cair da noite, a ele não amedrontava a noite, estava isento da marca do medo, ele portava as ausências no olhar. Para além das salas encadeadas alguém sentirá a sua falta na possibilidade íntima desta quimera. Mas nunca lhe surpreenderia o silêncio, aprendeu a desejá-lo, costurava redes com a massa densa do silêncio na intenção de envolver e manter longe de si a aflição e o desprezo dos amigos que não tinha.
O corredor era extenso, parecia um templo erigido sobre sombras de amplidão indefinida e que na noite sucumbia ao seu estado. A luminosidade vinha oblíqua acariciar as cicatrizes do rosto.


domingo, 30 de junho de 2013

DE OLHOS ABERTOS

Autor desconhecido



Ontem me vi pensando como se sente a última folha, do último ramo, de uma árvore muito alta. A que está mais perto da luz.
E por segundos pairei no ar, muito leve e iluminado.
Um dia talvez me lembre de outros detalhes dessa experiência no mínimo singular. De sentir-me pregado a terra e ao mesmo tempo flutuando num abismo azul ao lado de pássaros.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

VÉU COR CINZA-ESCURO

Em pesar pela morte do estudante Marcos Delefrate de 18 anos, morto em protesto.



Silêncio e tepidez a envolviam e transferiam à sua forma uma individualidade quase flutuante. De pé em frente à janela, poderia abraçá-la e envolver toda a sua extensão de brisa e carícia na pele. A suavidade feminina do vento valeria a vasta vida do instante. Ao sabor da manhã, a cortina descrevia movimentos delicados no espaço assim como seu vestido, como sua alma em melancolia, calma e amanhecer.
As cortinas que ela não afastou, filtravam a parca luz de um início. Delas secretamente dimanava sussurros de promessas, a de que além há um lugar que se levanta e aos poucos se liberta da zona de indistinção do breu. Nelas, figuras em ramificações a se alargar e distender, véu cinza de irrupção taciturna. Ímpeto absoluto de sutil mundividência medida no espaço curto da manhã que se levanta. Brasa e incêndio suscitaram a ilusão de uma realidade recuada se estendendo a sua frente. E era assim, momento em que inteira esteve entregue à cinza e aos galhos secos.
Em seus olhos, as pupilas dilatadas envoltas em fundas covas na face eram a imitação da ânsia e de abismos, sugeriam um apelo que se perdeu. Estavam quase levantados, semi-observando algo, talvez fosse a dor que se viu em sangue consumada e que o passado trouxe até ali. Piscavam por um instante os olhos. Parte de si ausência, a outra parte solidão, ia tecendo o instante na palidez da manhã. A serenidade da luz revelava a secreta plenitude do mistério, consciência do mais intrínseco estado que era seu. A limpidez que agora prova era uma certa qualidade metamorfoseada, indistinta luminosidade. A sentir em cada parte o corpo quebrantado, em cada lágrima a confirmação de um destino e no quarto inteiro o som opaco do relógio. Voltava repleta de cinza ainda imersa em massa entorpecida, motivo pelo qual ainda se negava ao tom suave das palavras.
A rua estreita seria o cenário do mundo se pudesse conter a sensação que a oprimia. Estava parada de pé, atrás de si uma rosa branca, expectante, chave para a primeira descoberta. Acompanhava o destino da íntima possibilidade ceifada, a pétala de perigo dos espinhos, colhida em jardim alheio, já encontrava seu repouso em um vaso de vidro. Nenhuma pétala decaída, fresca, aguardava o próximo movimento. Extasiada do impossível, cadafalso de cores destoantes, completava a sua existência de pé em frente à janela.

Enquanto isso, em um vaso de vidro a rosa filtra em pétalas de ausência a luz.


domingo, 16 de junho de 2013

SOBRE A CHUVA DOS CAMPOS

Dalcídio Jurandir



Eu sou um dos personagens de teu Ciclo Extremo, recolhido na rede, vagando sobre os campos. Eu lembro uma riqueza antiga de uma casa decadente, as minhas vigas podres foram esquecidas.
Eu sou a cicatriz no rosto de Orminda. O sangue de Alaíde vertido do ventre maculando-lhe o destino. Eu sou uma oração de São Cipriano perdida na boca de Ciloca, marcado pela peste, eu sou Eutanásio buscando a morte e a paixão. Antes de fechar o livro as minhas mãos negras acariciam as letras de cada página. Há muitos caminhos, não há um lugar.
O meu vulto encontrou nas fogueiras acesas um descanso fugaz, nas histórias ouve vozes acuadas e o silêncio se propagando em madeira oca. Todo o peso que carrego flutua sobre os alagados. Tuas palavras me acordam o vazio e o tédio como um sinal. As minhas mãos manchadas de sangue se misturam às tuas descrições sinuosas e avassaladoras. Não são as tuas palavras, são meus olhos que enxergam por dentro. Como um delírio que cobre inteiramente a dor de um dia comum numa cidade alucinada, as palavras que encontro em teus livros me movem sobre a ausência.  



Fotos de Maria Christina para a serie Sanctus




domingo, 9 de junho de 2013

O ENCOBERTO

Foto pertence à série Paris New York São Paulo de C. Criseo e M. Verlomme


Ele tinha fundo. Andava pelo vazio procurando algo que se encaixasse perfeitamente no espaço que escondia entre o tórax e o outro lado. Um dia encontrou uma pedra de medida certa e comprimento adequado. Caminhou com ela por rotações inteiras e viu o tempo morrer e nascer cada dia. Ele era a pedra, a pedra era ele.

No momento certo decidiu que era hora de colocar a pedra no espaço determinado. Não percebeu, todavia que seu peito se fazia mais e mais apertado. Foi quando a pedra se partiu e ele teve que ir em busca de um substituto para aquela ausência.

Foi andando no vazio, entre ruas e prédios, que ele encontrou um espelho partido. E o espelho partido cabia exatamente no espaço que lhe sobrava no peito. Sem demora ele tentou acomodá-lo naquele lugar que um dia fora vale, mas agora era apenas um declive. Com pesar percebeu que o fundo peito aos poucos se fazia raso e o espelho lhe arranhava, lhe sangrava o corpo. Então ele se partiu em pedaços menores e o homem continuou sua passagem com um pequeno espaço a completar.

Foi enquanto andava no vazio, cercado de pessoas, lama e asfalto, que ele percebeu jogado um botão. E o botão com muito esforço se amoldava no espaço mínimo que lhe sobrava na pele que ele podia tocar e tapar com o dedo nos momentos de maior aflição. O botão tinha outros quatro furos, pequeno e flexível se conformou perfeitamente àquela reentrância na pele.

E foi andando no vazio em meio ao silêncio que a sua visão se fez clara por um breve instante. Ele percebeu que tateava em círculos as paredes de um quarto fechado. Ainda assim, sem surpresa ou padecimento, se virou e como um afogado, se deixou levar pela superfície ondulante, por uma distancia qualquer até uma outra margem.