domingo, 28 de julho de 2013

CRISÁLIDA

Fotografia de James Houston

A sua capacidade de regeneração era muito grande, regeneração pela dor. Às vezes isso lhe concedia um olhar de mármore, frio e pétreo. Passava por tudo, encontrava a saída de cada labirinto que guardava dentro. Quando não se deparava com o outro lado acendia uma fogueira e abraçava as próprias pernas, aninhando a si mesmo.
Era uma forma de atravessar a coragem, construir uma nova casa depois da onda azul que toca o céu. Um lugar diferente com as mesmas vigas, mas com tinta fresca nas paredes, novos móveis, outro teto.
Hora de partir, estava sempre partindo. Quem o visse agora não notaria diferença alguma, distraidamente atravessaria o sangue derramado, não veria os rastros de luta passando de largo pelos vestígios do último embate. Mas ele era aquilo, uma outra forma para manter-se vivo, uma carne pálida brotando de uma casca morta.  






domingo, 21 de julho de 2013

EVANESCENTE

Fotografia de Brian Oldhan



Não se deve jogar fora certas coisas. Algumas delas deve-se guardar para realizar a experiência de sentir um mesmo objeto adquirindo um novo significado. Me arrependo de ter jogado no lixo um livro que eu mesmo escrevi aos 10 anos. Agora tento tocar a memória com as mãos de um afogado. Não há um apoio firme, só existe um imenso espelho d’água que logo se desfaz. Eu lembro de uma presença triste, como cacos de vidro numa gaiola. Eu lembro de silêncio e solidão sobre a mesa. Eu leio uma carta abrasada num labirinto insolúvel.

Es un milagro que estés vivo.

Eu sei, minha cara, sigo sabendo.


domingo, 14 de julho de 2013

FORÇA OCULTA

Fotografia da serie Ashes and Snow de Gregory Colbert


Não é uma novidade que Raimundo Rodrigues, de quarenta e sete anos, esteja agora procurando a arma com a qual matará sua mulher daqui a trinta e nove minutos no salão onde ela trabalha há um pouco mais de dois quarteirões do quarto que alugou depois da separação.
“Ela não vai ficar com tudo, quem ela pensa que é?”- era a frase que pulava constantemente do oco de dentro da cabeça de Raimundo Rodrigues para a sua boca. “Ela havia ido longe demais”, era o que dizia. 
Eu explico o que aconteceu antes da história que irá se desenrolar. Depois da última agressão, a mulher sem nome de Raimundo Rodrigues, tonou-se a Maria Rita da ocorrência policial. Maria Rita viu seu nome pela primeira vez quando saiu da delegacia com o dente quebrado e com hematomas pelo braço e pelo rosto devido à última briga com o homem que acreditava que ela lhe pertencia como uma camisa velha e gasta que não se quer fora do armário.
Maria Rita já escuta seu nome e fala palavras belas como dia, lágrima e flor. Sua filha lhe fez um desenho novo: elas de mãos dadas sobre um risco azul, ao fundo, um círculo amarelo flutua.  
No salão ela conversa com as clientes, o galã da novela dá entrevista no programa da Fátima. Ela se aproxima da televisão, aumenta o volume, observa a funcionaria que trabalha ao seu lado e sorri.



domingo, 7 de julho de 2013

O TEMPLO REINVENTADO

Fotografia de Arash Ashkar

Todo, seus olhos, o concreto, ele próprio. Parte dele erigida na fuga encontraria por fim o seu repouso, a luz iniciou sua senda, ele penetrou no corredor num passo de leveza calculada, expectante, observando a fragilidade das paredes e a aparência circunspeta daquela superfície. As pessoas nas salas se foram com o cair da noite, a ele não amedrontava a noite, estava isento da marca do medo, ele portava as ausências no olhar. Para além das salas encadeadas alguém sentirá a sua falta na possibilidade íntima desta quimera. Mas nunca lhe surpreenderia o silêncio, aprendeu a desejá-lo, costurava redes com a massa densa do silêncio na intenção de envolver e manter longe de si a aflição e o desprezo dos amigos que não tinha.
O corredor era extenso, parecia um templo erigido sobre sombras de amplidão indefinida e que na noite sucumbia ao seu estado. A luminosidade vinha oblíqua acariciar as cicatrizes do rosto.