sábado, 11 de janeiro de 2014

AMOR

Foto de Francesco Sambo


Tento manter os olhos abertos. A mesa está posta, eu sentado numa ponta, a senhora na outra. A janela fechada, um vaso sem flor. Já não sinto parte do meu corpo, estou inerte, sinto o suficiente para me incomodar com a boca seca e perceber os ombros levemente contraídos.
E te avisei que isso de acreditar demais era perigoso, eu falei à tua surdez que o sagrado é um risco de olhos fechados. Eu te lembrei quando me culpavas e me perseguias que a tua fé era de separar.
Quando os vizinhos perguntavam eu respondia que estavas bem, que estavas doente, que a tua vida agora era de reclusão.  Mas tudo isso não foi de repente. Tu conhecias a mim, eu conhecia a ti, o confronto era iminente.
Num dia sem portas nem janelas, sem crucifixos ou redomas eu cavei as tuas entranhas, eu preparei o jantar, só eu acordei no outro dia. Tu me fizeste estar aqui hoje, depois de sofrer essa dor fina que incomoda cada vez mais. Por anos segurei teu peso.
Meus olhos querem fechar. Talvez aguente um pouco mais. Quanto durará até que nos encontrem em nossa última refeição?
Nesse momento em que tudo é abismo, me pergunto se o perdão ainda virá reparar nossas angústias.   


domingo, 5 de janeiro de 2014

CIDADES SUBMERSAS

Foto de Paula Sampaio

Tua alma de ar ameno e taciturno, teu bosque comovido pela luz, limiar entre meu corpo e o teu, padecente. Estás parado e não sabes para onde voltar teu espírito. Sobre a superfície lisa do vento escorre teu olhar, gota a gota. À frente muros ardem de sol, a casa no início da rua incrustada de fogo; estás inerte, tua boca emudecida para o que seja, jornal respingando sangue na direção dos teus olhos, que baços, não o vêem.  Quem te dirá do mundo para que possas ouvir?
Não sei quanto tempo resta, da janela vejo sombras que se dissolvem na noite em início, minha mala está pronta, próxima à porta. Nesta carta há preditas distâncias. Eu me ausentarei em breve, assim que seja findo o que tenho que dizer-te. Não há início que se cumpra, tudo é uma partida, um prolongamento de vazios. Sair é pertença finda. O que mais seria a vida senão a queda brusca de um copo cheio de água? Sim, sentirás minha ausência de poço fundo habitado pelo nada, conduzirás flores à minha lápide, chorarás por uma semana ou quinze dias. Mas retornarás ao teu jornal aberto, teus muros de ferro, tua casa vazia ao longe. Não tão longe talvez.