sábado, 20 de dezembro de 2014

o deserto

Foto de Sebastião Salgado



Antes de tudo o deserto
O desmoronamento
pele mosaico
rio seco

mínimo escorpião atravessa a caverna de areia

Nem passos
Nem lágrima

Uma serpente
Por que o deserto
Por que o caminho
Por que a tardança

A casa
O lugar
A passagem

Bebe teu deserto e serás pleno

sábado, 15 de novembro de 2014

A EXTENSÃO DO CORPO

Obra de Peter Gibson, também conhecido como Roadsworth


Tudo começou quando estava displicentemente alcançando a faixa para atravessar a rua. Rápido, um carro esgueirou-se no outro que estava prestes a deixar a vaga. Óbvio que essa proximidade entre os veículos não podia ser saudável para ambos. O carro que passou, levou consigo o retrovisor do que se preparava para deixar a vaga. Não informei antes, mas da posição em que me encontrava podia ver o condutor do carro que saia da vaga, por isso consegui perceber a mudança nas feições do rosto. Em poucos segundos, uma aparência comum, quase transparente, como a de muitas pessoas que passam por nós, se transformou em linhas emaranhadas e toque áspero.
O objetivo era claro, alcançar o carro que lhe havia extraído um órgão, sem anestesia nem consentimento. Pegá-lo na esquina, cavar-lhe as entranhas com uma pá cheia de dentes, expor a ignomínia em praça pública e exigir reparação, quem sabe a que preço.
Mas, para o malogro de todo o intento, o motor explodiu ali mesmo, sem forças para disparar. O outro carro já ia pela outra esquina, salvo do risco do confronto, ainda com a pressa de antes ou mais atento pelo menos.
O nosso amigo do carro avariado, no entanto, sem justiça e sem reparo, estancou um metro adiante. A extensão do seu corpo o impediu de passar pela segunda vez. Ficou entregue a olhares curiosos, metade adesão, metade pena. Um vendedor ambulante que acompanhou a cena desde o início e tinha uma memória de elefante, anotou a placa do meliante.
Eu, ao contrário, reparei que havia sangue no asfalto, passei pelo retrovisor caído, margeei os cacos e atravessei a rua.


sábado, 8 de novembro de 2014

ABALO

Superfície, Leo de Carvalho




Falo toca o húmus
                                                                         iridescente

Cheio de terra  
                   
                   Alo rompe
                 Casco fende
     e com um novo galho
cavo o rés do chão      

sábado, 25 de outubro de 2014

ANATOMIA FÁLICA


Fotografia da série "My Private Bestiary" de Zdenek Tusek 



Escondido sob a poeira cotidiana
Seu outro nome
          nó

 tênue anatomia



sábado, 11 de outubro de 2014

ENTRE A PELE E OS OSSOS

Fotografia da exposição "Made by... Feito por brasileiros"




Depois do corte
       Dos cortes

o sangue cai
              por terra
                  
                   e semeia
outros chamados


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

CORA VENENOSA

Foto extraída do Google Imagens

Assistindo a novela das 9, me deparei com uma personagem que definitivamente faz parte das narrativas cotidianas que me rodeiam. Entenda-se por narrativas cotidianas aquelas histórias que chegam até nós pela voz de outros, amigos, parentes, conhecidos. Ela é a tia Cora. Sempre me falaram de presenças incômodas e espíritos opressivos, que não precisam estar necessariamente desencarnados para oprimir.
Algo parecido me veio à mente ontem quando assistia a um capítulo, que talvez fosse só mais um capítulo de novela. Mesmo que você não acompanhe diariamente o folhetim, é difícil não se deliciar com os elementos que fazem a tia Cora transbordar negatividade. A começar pelo cenário, mesmo habitando o núcleo pobre da novela, a tia Cora consegue salvar o raso com a profundidade. O lugar simples, com relevo aos matizes de cinza e à obscuridade, dá um acento a mais aos diálogos entre tia e sobrinha.

Foto extraída do Google Imagens

Sempre com uma palavra oculta, um duplo sentido bem colocado ou uma resposta maliciosa a personagem se esgueira pelos cantos para ouvir onde não é chamada e se torna especialista em jogar a sobrinha pra baixo. A sobrinha poderia ser considerada um outro elemento desse contexto, lembrando que as mocinhas são quase irrelevantes para o interesse das histórias. Assim, nesse caso, como em todos os outros, a mocinha ajuda a vilã a se sobressair.  E mesmo um inocente bom dia, se sai da boca de uma Cora, pode ser suficiente para trazer peso a um instante de leveza ou quebrar uma fugaz alegria.
A sobrinha nesse caso somos nós, seguindo distraidamente e a tia Cora é a pedra que de maneira dissimulada atravessa nosso caminho a fim de nos derrubar. E muitas vezes consegue.


Foto extraída do Google Imagens


Se o perigo é iminente, então como transpor a Cora que está sempre à espreita para abalar os nossos dias, que sem ela já são suficientemente complicados. Quem sabe o conselho da parábola bíblica, “orai e vigiai”, seja a única saída possível, uma vez que, como a Hidra de Lerna, uma outra Cora, ou uma outra cabeça, pode surgir no lugar que acreditávamos livre. Quem sabe não haja resposta para esse fato. No mundo que pressupõe o risco, a simples atitude de virar a esquina e manter diálogo breve com um desconhecido (ou com um conhecido mesmo) pode fazer com que nos deparemos com uma Cora escondida. Acho que a melhor saída está em ser menos mocinha e ter olhos para ver antes do último capítulo.        

domingo, 17 de agosto de 2014

O OUTRO OPOSTO

Foto de Arman Shirzad


Eu sinuoso sigo por toda a extensão da tua linearidade Martelo desfazendo, descosendo a tua tapeçaria Eu existo e não existo, cuidado comigo Eu mancho Eu cubro Eu durmo no meio do jantar – a mesa posta, o rei disposto a comandar – E me instalo nos pequenos cantos da tua complacência Tentar tomar o meu corpo é inútil porque a minha carne é flexível Quando vens eu viro outro no meio do campo sob o sol do meio dia E não sabes me ver E não podes ter Por que não escondes a tua mão enquanto é possível desfazer-se dos dedos que pendem em excesso? Abre tua folha em branco e percebe a letra escondida no canto da página Mostra-me teu sexo enquanto eu desvisto essa roupa, mas não demora Um dia tu vi/erás E eu já terei (des)feito

sábado, 26 de julho de 2014

VIT[R]AL



Video de "Until the End", de Norah Jones


Escolheu Bach e aumentou o volume, em instantes a casa inteira foi tomada por uma suavidade imponente, se sentiu caminhando em uma catedral perpassada de sombras e corredores ocultos, com sol se pondo na janela. E não eram janelas, eram vitrais espalhando cores pelo ar rarefeito. E não era um quadro da última ceia, era mesa posta servindo corpo e sangue.

Chegou ao altar, ajoelhou-se, se integrou à música que se elevava.

Mas um ruído nos portões perturbou a metamorfose que se desdobrava entre as fibras finas do silêncio e penetrou pelas paredes, agora duras e pálidas.

Ofereceu um último instante ao calmo escuro do tempo para reabrir a derradeira fresta. Caminhou claro como uma aranha de jardim tateando o substrato antes de retornar à sonoridade áspera que irrompia do quase termo. 

sábado, 5 de julho de 2014

A SALA


Obra de Antonio Mora

 

A sala aos poucos se elevava na angústia branca das paredes, no horizonte sem relógios possíveis incapazes de traçar em seus arcos a nitidez das folhas ao vento. Em suas mãos a rosa não era mais de plástico, a permanência dos espinhos demarcava a embriaguez de uma possibilidade, sua existência calculada e reduzida.
O risco o reduzia, sim. O sufocava pelo medo de estar à beira de rumos e passagens através das quais nenhum ser humano ousou pular, de abismos vários que ser humano algum imaginou um dia ser.
A marca foi se tornando imperceptível, deflagrava sangue e minúcias de escuridão, voracidade circunscrita às camadas mais profundas do esquecimento. Preferia não lembrar porque sabia ter de aceitar na lembrança a distorção, seu aproximar-se pouco a pouco de outro modo, até vir o passar das horas e o levar. Seu destino, as ilusões e um desejo.

domingo, 29 de junho de 2014

FIO DESENCAPADO



 
Escultura de Anders Krisár


Fio desencapado.

Água rastejando pelo chão

Nossos vidros repercutindo a luz em pontas afiadas

Algo se prolonga no fio tênue passando pela mão, cada vez mais rápido pairando o calor e o relâmpago

Eu sofro a tua ânsia eu sofro o teu nojo por esses meandros particulares e portas cerradas.

E a navalha passa e o rio passa também em duas consequências invisíveis e tão presentes

Para emergir 
enterro os braços em agulhas e mergulho em farpas finas

luminescentes




sábado, 21 de junho de 2014

SALA DE ESPELHOS NÚMERO DOIS



 
Foto da serie "Espelho quebrado, céu do entardecer", de Bing Wrigth
   
Sondou a própria alma em busca de reflexos distorcidos, imagens destoantes, oscilações. Embora em si soubesse que nada poderia ser vislumbrado de seus olhos, restava-lhe apenas a ausência de salvação. Sentado, sua vontade percorria cada ponto como se os tocasse com a ponta dos dedos. Limitado, sua vontade era feita ao mesmo tempo de asas e correntes, de estar entregue ao voo e permanecer pregado ao chão. Percebeu que não estava só, que outros o acompanhavam no abismo, na contida tendência de seus gestos.

Era ele e outras pessoas na sala de espera. A vida impõe senhas impossíveis. Ainda assim ele esperava a sua vez na sala, como todos os outros, preparados ou não.

Sussurros emanavam da cena congelada. Uma mulher a folhear uma revista, e a cada fotografia, a cada atenção voltada àquelas cenas frias iam movimentos de melancolia suspensa e de cansaços. 
Outra está a assistir a televisão  pregada na parede e que se ouve mal. O som assim posto salva da lucidez a quantidade de vazios capazes de acordar durante a extensão de silêncios da espera. 
Naquela sala, naquele agora pleno de fugacidade, habitam vidas milimétricas, de horário marcado, de espírito marcado.

Enquanto ele, dono dos olhos suspensos, mirava a ordenação aparente dos nomes e a iminência de um chamado.