domingo, 8 de novembro de 2015

A forma justa


Da carne fétida quer desvencilhar-se
Corpo regurgitando outro corpo
Depois de fazer da carcaça a sua senda
se contorce e rasteja pelos cantos
em espasmos de alegria e gozo
por restaurar o elo entre as esferas


domingo, 11 de outubro de 2015

DO OUTRO LADO DO SOL



Do outro lado do sol brota uma luz travessa
Que não cega e pesa como lágrima no rosto
Ou saudade de amor distante

Do outro lado do sol
há planetas entortando órbitas
constelações tecendo fios ao acaso
luminosos

Lá eu monto minha casa e convoco a esperança dos profetas
A esperança perfeita dos profetas
Que salvaguarda as horas do fino barulho dos relógios


domingo, 27 de setembro de 2015

SAÍDA


Nesta casa de chão movediço e paredes tortas
Eu criei um abrigo
Eu criei uma porta
No lar quebrado está o meu albergue
Do seu peso faço voar mariposas

Que o teto se abra
Que as vozes se calem e voltem a soar
Jogando com o vazio
Eu encontro a passagem
Que faz a vida menos íngreme
E recobre o céu de outros pedaços


sábado, 12 de setembro de 2015

OS DIAS

Foto da série Human Animal de Vincent Legrange




Os dias, cada vez mais pesados,
                          Insuportável peso
                          Irresistível queda
No horizonte, areia fina se dispersa
É o olhar derramado que vacila
                          Dilúvio aplaca a ira
                          Sangue hasteia a dor



Calma, a eternidade é passageira
O chão divide espaço com a brisa
que logo sopra e o mal dissipa



domingo, 30 de agosto de 2015

A árvore

Fotografia de Beth Moon


A árvore atravessou o tempo
Levantam-se os muros da antiga cidade,
eles não testemunharam o surgimento dela.
Esquecida, pôde crescer
Perdida, se ergueu entre tudo.
Com raízes rasgando a terra, apesar da sombra,
apesar do tédio,
o movimento nunca deixou de percorrer os galhos por dentro.
O tronco robusto, de tamanho mediano,
favoreceu sua existência leve e silenciosa.

Um dia a vida cessará de recolher o húmus,
as folhas se dobrarão
o oco tomará suas formas.
Ela então livre do fado de antes, poderá retornar.


sábado, 15 de agosto de 2015

O furo na cabeça

Fotografia de Arash Ashkar


Esquece que as palavras se distraem falando sozinhas
Nem diante de três palavras-cinzas
                                                                                        mar          
                    muro
                    estrada                                                                                   
perceberia os contornos da sombra
                    surgindo nos espelhos
Mas a cama está pronta
e a mesa posta
A fenda que oculta a passagem das formigas não encobre as feridas na parede.
  

sábado, 1 de agosto de 2015

A parte

Fotografia de Miguel Rius



Ele veio depois
Logo, seria menor
Menor a parte
Menor o todo
Imaginei o sentido
Se dando como réstia
Se abrindo como faca amolada
Cortando o mar
Assim o provisório se revela
Quando apaga a sua face e preenche tudo
Ele então penetrou naquele mundo
Provocando pequenos milagres

na fria superfície

sábado, 4 de julho de 2015

A LÍNGUA

Gatinho com chapéu, fotografia de autor desconhecido



É necessário encher-se de luz apagada
Tatear os rins
O baço
Sentir por trás da pele a carne quente
O sabor que invade caudaloso
O chão que ri a cada passo
Depois de tudo                         escuta
Algo acontece
(a vida é estranhamente)



sábado, 27 de junho de 2015

Louva-deus

Fotografia de Marc Lagrange




Iremos amiúde ver o mar
E já não me amarás como um estrangeiro.
(Estranho, Max)


Estarei na tua caça à hora do jantar.
A estrada é ampla em carros e corpos invisíveis, teus sentidos me fazem errar sem problemas.
Estou aqui, sentado no sofá, olhando teus olhos, por vezes, tua boca. Em cada gesto revela-me quem és.
Saboreio o alimento, os morangos vêm coroar a noite. Estou entregue, teus braços me contam sortilégios. Revelam-me desejos.
Depois do gozo, debruço-me em tuas pernas, conversamos sobre nada e o nada nos apetece. Empunhas faca de longa lâmina. Pesos já não me seguram, num instante vejo o mar – grãos de areia aderem à pele úmida.

Preparo meu corpo para ser a tua casa.


sábado, 13 de junho de 2015

A BEIRA

 
Foto de Antonio Mora



Escrevem livros para lhe encobrir
Propagandas distorcem sua verticalidade
Mas a beira não esconde o medo

Provoca-me a queda
Seduz o limiar
Pau desejando carne aberta
Vertigem que desperta o outro lado

Tudo frágil e inescapável
Frente à
fome
que digere o espetáculo
acende miudezas invisíveis e
corrói o mármore talhado
em poucos segundos a fera perde a dúvida

sábado, 30 de maio de 2015

DE MÃOS DADAS

 
Fonte desconhecida


Sua presença pertence a uma geração
que as viu tombar
e a margem recrudescer
E não terá prece que alcance o medo
Não terá mansidão que acalme a culpa
Submissa ao que os pés pisam
ao que as mãos podem agarrar
Quando o gosto amargo vier à boca

O céu será a imagem oculta desses dias

sábado, 23 de maio de 2015

LIVRAMENTO


Foto de Tab Tuhin




É muito difícil a vida nesse corpo
É preciso despertar o grão
testar a precisão da chuva
e farto decidir o próximo pouso
Ver por fim que todo rio encontra um passo
toda pena seu avesso


sábado, 16 de maio de 2015

CANÇÃO DE ALUMIAR

Ilustração de Kerby Rosanes




Puxa o fio até a ponta
Pra saber aonde vai dar
Pra sonhar depois de tudo
Pra voltar depois do mar

Reacende o caos do mundo
cava a mina sem pensar
solta o pé, escorre a curva

faz voar o teu penar

sábado, 9 de maio de 2015

RASGO SUTIL

Obra de Miss Take



Flor sem custo
que interrompe linhas
reacende os arcos
Entrega aos olhos caule e cor
suspensos sobre a terra
Invade com desprezo o que pende como estigma
Sem causalidade
A flor salva as tuas formas


sábado, 2 de maio de 2015

Pretérito



Esqueletos retirados de catacumbas em Roma.


Triste fim, nasceu príncipe. Perdeu a possibilidade de não ser. Caiu na esteira do mundo como uma estátua de mármore.
A janela se abriu e encontrou poeira nos móveis. O sol se pôs antes de chegar a consciência de que é belo o vermelho e a esfera que se move para outro lado.
Triste fim, nasceu príncipe. Resta-lhe tudo. Foi recebido ternamente pela malha bruta do mundo. Foi posto num saguão limpo entre objetos raros.
Uma fotografia parada está entre seus dedos mínimos. Lá ele se encontra no colo quente de sua madre jovem e seu olhar se levanta sem saber quem primeiro o abandonou.

domingo, 26 de abril de 2015

Fim


Fotografia de Zdenek Tusek da série "My bestiary"




Precisava deslocar-se do meio fio ao esgoto, mas ficou na metade do caminho com as patas enfileiradas e sua carapaça que não protegia tanto afinal. O esforço seria rápido e preciso, o risco valeria, no entanto, para escapar do charco cada vez mais cheio e quem sabe descobrir uma reentrância como abrigo até o fim da intempérie. A pressão sobre si abateu-a de repente, as pernas se separaram. O tórax rachado expelia um líquido branco, seu corpo inteiro aderiu ao cimento molhado.  Debruçou-se, num derradeiro espasmo, que separou sua cabeça do resto do corpo.

Em pouco tempo o mundo havia acabado.

terça-feira, 21 de abril de 2015

O lagarto


Fotografia de Sebastião Salgado



Miragem premonitória
ver o que não existe
outra vez a vida suja as bordas

Toque intenso na aparência vacilante

Grades se dissolvem como areia
Por trás dos muros desse dia e dos próximos

Ela não tem centralidade
Ela gira em torno, é através
    Ela se oculta no nome Corda retesada flor asfáltica se abrindo apesar


sábado, 28 de março de 2015

Beleza

Fotografia de Zdenek Tuzek da série "Still Life"




Estamos vivos, ainda há latência nesses restos.

Daqui parece que somos invencíveis, como o trovão no cair da tarde. Debaixo da mesa, abraçando as pernas, sente-se o cheiro da latrina lavando os destroços.

E há os saqueadores sobre as ruínas. Eles não sabem que existe sanidade nesses corpos. Mas, por pouco jorra, por pouco, perde-se o controle.

  Andamos alguns metros à frente, as pernas tremem.

Levaram muito

E podiam ter levado
a vida.


sábado, 10 de janeiro de 2015

DEPOIS

Frida Kahlo de terno, foto tirada por seu pai, Guillermo Kahlo em 1926.



Não terá tempo
Não terá tempo
Quando o tempo chegar
já não terá tempo
Nem perca o seu mundo
A viagem ao oriente
O sol distraído na margem de tudo
Logo passará

E a vida
E os amigos
E o sexo tântrico

A caixa estará vazia
Sem doces palavras ou montes
um sol que desperte ou noite de chuva

E o que resta
O que restará

Margaridas na janela
E um espelho quebrado