domingo, 30 de junho de 2013

DE OLHOS ABERTOS

Autor desconhecido



Ontem me vi pensando como se sente a última folha, do último ramo, de uma árvore muito alta. A que está mais perto da luz.
E por segundos pairei no ar, muito leve e iluminado.
Um dia talvez me lembre de outros detalhes dessa experiência no mínimo singular. De sentir-me pregado a terra e ao mesmo tempo flutuando num abismo azul ao lado de pássaros.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

VÉU COR CINZA-ESCURO

Em pesar pela morte do estudante Marcos Delefrate de 18 anos, morto em protesto.



Silêncio e tepidez a envolviam e transferiam à sua forma uma individualidade quase flutuante. De pé em frente à janela, poderia abraçá-la e envolver toda a sua extensão de brisa e carícia na pele. A suavidade feminina do vento valeria a vasta vida do instante. Ao sabor da manhã, a cortina descrevia movimentos delicados no espaço assim como seu vestido, como sua alma em melancolia, calma e amanhecer.
As cortinas que ela não afastou, filtravam a parca luz de um início. Delas secretamente dimanava sussurros de promessas, a de que além há um lugar que se levanta e aos poucos se liberta da zona de indistinção do breu. Nelas, figuras em ramificações a se alargar e distender, véu cinza de irrupção taciturna. Ímpeto absoluto de sutil mundividência medida no espaço curto da manhã que se levanta. Brasa e incêndio suscitaram a ilusão de uma realidade recuada se estendendo a sua frente. E era assim, momento em que inteira esteve entregue à cinza e aos galhos secos.
Em seus olhos, as pupilas dilatadas envoltas em fundas covas na face eram a imitação da ânsia e de abismos, sugeriam um apelo que se perdeu. Estavam quase levantados, semi-observando algo, talvez fosse a dor que se viu em sangue consumada e que o passado trouxe até ali. Piscavam por um instante os olhos. Parte de si ausência, a outra parte solidão, ia tecendo o instante na palidez da manhã. A serenidade da luz revelava a secreta plenitude do mistério, consciência do mais intrínseco estado que era seu. A limpidez que agora prova era uma certa qualidade metamorfoseada, indistinta luminosidade. A sentir em cada parte o corpo quebrantado, em cada lágrima a confirmação de um destino e no quarto inteiro o som opaco do relógio. Voltava repleta de cinza ainda imersa em massa entorpecida, motivo pelo qual ainda se negava ao tom suave das palavras.
A rua estreita seria o cenário do mundo se pudesse conter a sensação que a oprimia. Estava parada de pé, atrás de si uma rosa branca, expectante, chave para a primeira descoberta. Acompanhava o destino da íntima possibilidade ceifada, a pétala de perigo dos espinhos, colhida em jardim alheio, já encontrava seu repouso em um vaso de vidro. Nenhuma pétala decaída, fresca, aguardava o próximo movimento. Extasiada do impossível, cadafalso de cores destoantes, completava a sua existência de pé em frente à janela.

Enquanto isso, em um vaso de vidro a rosa filtra em pétalas de ausência a luz.


domingo, 16 de junho de 2013

SOBRE A CHUVA DOS CAMPOS

Dalcídio Jurandir



Eu sou um dos personagens de teu Ciclo Extremo, recolhido na rede, vagando sobre os campos. Eu lembro uma riqueza antiga de uma casa decadente, as minhas vigas podres foram esquecidas.
Eu sou a cicatriz no rosto de Orminda. O sangue de Alaíde vertido do ventre maculando-lhe o destino. Eu sou uma oração de São Cipriano perdida na boca de Ciloca, marcado pela peste, eu sou Eutanásio buscando a morte e a paixão. Antes de fechar o livro as minhas mãos negras acariciam as letras de cada página. Há muitos caminhos, não há um lugar.
O meu vulto encontrou nas fogueiras acesas um descanso fugaz, nas histórias ouve vozes acuadas e o silêncio se propagando em madeira oca. Todo o peso que carrego flutua sobre os alagados. Tuas palavras me acordam o vazio e o tédio como um sinal. As minhas mãos manchadas de sangue se misturam às tuas descrições sinuosas e avassaladoras. Não são as tuas palavras, são meus olhos que enxergam por dentro. Como um delírio que cobre inteiramente a dor de um dia comum numa cidade alucinada, as palavras que encontro em teus livros me movem sobre a ausência.  



Fotos de Maria Christina para a serie Sanctus




domingo, 9 de junho de 2013

O ENCOBERTO

Foto pertence à série Paris New York São Paulo de C. Criseo e M. Verlomme


Ele tinha fundo. Andava pelo vazio procurando algo que se encaixasse perfeitamente no espaço que escondia entre o tórax e o outro lado. Um dia encontrou uma pedra de medida certa e comprimento adequado. Caminhou com ela por rotações inteiras e viu o tempo morrer e nascer cada dia. Ele era a pedra, a pedra era ele.

No momento certo decidiu que era hora de colocar a pedra no espaço determinado. Não percebeu, todavia que seu peito se fazia mais e mais apertado. Foi quando a pedra se partiu e ele teve que ir em busca de um substituto para aquela ausência.

Foi andando no vazio, entre ruas e prédios, que ele encontrou um espelho partido. E o espelho partido cabia exatamente no espaço que lhe sobrava no peito. Sem demora ele tentou acomodá-lo naquele lugar que um dia fora vale, mas agora era apenas um declive. Com pesar percebeu que o fundo peito aos poucos se fazia raso e o espelho lhe arranhava, lhe sangrava o corpo. Então ele se partiu em pedaços menores e o homem continuou sua passagem com um pequeno espaço a completar.

Foi enquanto andava no vazio, cercado de pessoas, lama e asfalto, que ele percebeu jogado um botão. E o botão com muito esforço se amoldava no espaço mínimo que lhe sobrava na pele que ele podia tocar e tapar com o dedo nos momentos de maior aflição. O botão tinha outros quatro furos, pequeno e flexível se conformou perfeitamente àquela reentrância na pele.

E foi andando no vazio em meio ao silêncio que a sua visão se fez clara por um breve instante. Ele percebeu que tateava em círculos as paredes de um quarto fechado. Ainda assim, sem surpresa ou padecimento, se virou e como um afogado, se deixou levar pela superfície ondulante, por uma distancia qualquer até uma outra margem.





domingo, 2 de junho de 2013

ATRAVÉS

Fotó de Ary Souza



Quem são os olhos que me enfrentam?
Parei e fui ver através do vidro. A fumaça que encobria o mundo lá fora dificultava um pouco a visão. Posto que estivesse curioso e pego no susto, logo me aproximei do vidro impelido por uma curiosidade tal a de quem se espanta ao perceber um movimento sobre a mesa, e depois, por dar-se conta de que se tratava apenas de uma formiga, ignora. Foi com esta sensação, a de que talvez encontrasse um par de gravetos de uma árvore da rua que movidos pelo vento se assemelhariam a dois olhos; ou um gato qualquer a brincar pelas janelas das casas, que me fez estar voltado para aquela direção. Então olhei através. Tive, naquele momento, a sensação de se tratarem de olhos humanos do lado além do vidro. Miravam-me, inquiriam-me algo.

Por estar tão perto e pela surpresa, afastei-me um pouco e depois pus uma palma de cada lado da face e me reaproximei. Vã tentativa, que o exterior, devido ao vidro, de mim separado, escondia apenas a presença de um vulto a se distanciar. E um pouco mais à frente, as pessoas... Alheias a tudo.