Ontem me vi pensando como se sente a última folha,
do último ramo, de uma árvore muito alta. A que está mais perto da luz.
E por segundos pairei no ar, muito leve e iluminado.
Um dia talvez me lembre de outros detalhes dessa
experiência no mínimo singular. De sentir-me pregado a terra e ao mesmo tempo
flutuando num abismo azul ao lado de pássaros.
Em pesar pela morte do estudante Marcos
Delefrate de 18 anos, morto em protesto.
Silêncio
e tepidez a envolviam e transferiam à sua forma uma individualidade quase
flutuante. De pé em frente à janela, poderia abraçá-la e envolver toda a sua
extensão de brisa e carícia na pele. A suavidade feminina do vento valeria a
vasta vida do instante. Ao sabor da manhã, a cortina descrevia movimentos
delicados no espaço assim como seu vestido, como sua alma em melancolia, calma
e amanhecer.
As
cortinas que ela não afastou, filtravam a parca luz de um início. Delas
secretamente dimanava sussurros de promessas, a de que além há um lugar que se
levanta e aos poucos se liberta da zona de indistinção do breu. Nelas, figuras
em ramificações a se alargar e distender, véu cinza de irrupção taciturna. Ímpeto
absoluto de sutil mundividência medida no espaço curto da manhã que se levanta.
Brasa e incêndio suscitaram a ilusão de uma realidade recuada se estendendo a
sua frente. E era assim, momento em que inteira esteve entregue à cinza e aos
galhos secos.
Em
seus olhos, as pupilas dilatadas envoltas em fundas covas na face eram a
imitação da ânsia e de abismos, sugeriam um apelo que se perdeu. Estavam quase
levantados, semi-observando algo, talvez fosse a dor que se viu em sangue
consumada e que o passado trouxe até ali. Piscavam por um instante os olhos.
Parte de si ausência, a outra parte solidão, ia tecendo o instante na palidez
da manhã. A serenidade da luz revelava a secreta plenitude do mistério,
consciência do mais intrínseco estado que era seu. A limpidez que agora prova
era uma certa qualidade metamorfoseada, indistinta luminosidade. A sentir em
cada parte o corpo quebrantado, em cada lágrima a confirmação de um destino e
no quarto inteiro o som opaco do relógio. Voltava repleta de cinza ainda imersa
em massa entorpecida, motivo pelo qual ainda se negava ao tom suave das
palavras.
A
rua estreita seria o cenário do mundo se pudesse conter a sensação que a
oprimia. Estava parada de pé, atrás de si uma rosa branca, expectante, chave
para a primeira descoberta. Acompanhava o destino da íntima possibilidade
ceifada, a pétala de perigo dos espinhos, colhida em jardim alheio, já
encontrava seu repouso em um vaso de vidro. Nenhuma pétala decaída, fresca,
aguardava o próximo movimento. Extasiada do impossível, cadafalso de cores destoantes,
completava a sua existência de pé em frente à janela.
Enquanto
isso, em um vaso de vidro a rosa filtra em pétalas de ausência a luz.
Eu sou um dos personagens de teu
Ciclo Extremo, recolhido na rede, vagando sobre os campos. Eu lembro uma
riqueza antiga de uma casa decadente, as minhas vigas podres foram esquecidas.
Eu sou a cicatriz no rosto de
Orminda. O sangue de Alaíde vertido do ventre maculando-lhe o destino. Eu sou
uma oração de São Cipriano perdida na boca de Ciloca, marcado pela peste, eu
sou Eutanásio buscando a morte e a paixão. Antes de fechar o livro as minhas
mãos negras acariciam as letras de cada página. Há muitos caminhos, não há um
lugar.
O meu vulto encontrou nas fogueiras
acesas um descanso fugaz, nas histórias ouve vozes acuadas e o silêncio se
propagando em madeira oca. Todo o peso que carrego flutua sobre os alagados.
Tuas palavras me acordam o vazio e o tédio como um sinal. As minhas mãos
manchadas de sangue se misturam às tuas descrições sinuosas e avassaladoras.
Não são as tuas palavras, são meus olhos que enxergam por dentro. Como um
delírio que cobre inteiramente a dor de um dia comum numa cidade alucinada, as
palavras que encontro em teus livros me movem sobre a ausência.
Foto pertence à série Paris New York São Paulo de C. Criseo e M. Verlomme
Ele tinha fundo. Andava pelo vazio procurando algo
que se encaixasse perfeitamente no espaço que escondia entre o tórax e o outro
lado. Um dia encontrou uma pedra de medida certa e comprimento adequado.
Caminhou com ela por rotações inteiras e viu o tempo morrer e nascer cada dia. Ele
era a pedra, a pedra era ele.
No momento certo decidiu que era hora de colocar a
pedra no espaço determinado. Não percebeu, todavia que seu peito se fazia mais
e mais apertado. Foi quando a pedra se partiu e ele teve que ir em busca de um
substituto para aquela ausência.
Foi andando no vazio, entre ruas e prédios, que ele
encontrou um espelho partido. E o espelho partido cabia exatamente no espaço
que lhe sobrava no peito. Sem demora ele tentou acomodá-lo naquele lugar que um
dia fora vale, mas agora era apenas um declive. Com pesar percebeu que o fundo
peito aos poucos se fazia raso e o espelho lhe arranhava, lhe sangrava o corpo.
Então ele se partiu em pedaços menores e o homem continuou sua passagem com um
pequeno espaço a completar.
Foi enquanto andava no vazio, cercado de pessoas, lama
e asfalto, que ele percebeu jogado um botão. E o botão com muito esforço se
amoldava no espaço mínimo que lhe sobrava na pele que ele podia tocar e tapar
com o dedo nos momentos de maior aflição. O botão tinha outros quatro furos,
pequeno e flexível se conformou perfeitamente àquela reentrância na pele.
E foi andando no vazio em meio ao silêncio que a sua
visão se fez clara por um breve instante. Ele percebeu que tateava em círculos
as paredes de um quarto fechado. Ainda assim, sem surpresa ou padecimento, se
virou e como um afogado, se deixou levar pela superfície ondulante, por uma
distancia qualquer até uma outra margem.
Parei e fui
ver através do vidro. A fumaça que encobria o mundo lá fora dificultava um
pouco a visão. Posto que estivesse curioso e pego no susto, logo me aproximei
do vidro impelido por uma curiosidade tal a de quem se espanta ao perceber um
movimento sobre a mesa, e depois, por dar-se conta de que se tratava apenas de
uma formiga, ignora. Foi com esta sensação, a de que talvez encontrasse um par
de gravetos de uma árvore da rua que movidos pelo vento se assemelhariam a dois
olhos; ou um gato qualquer a brincar pelas janelas das casas, que me fez estar
voltado para aquela direção. Então olhei através. Tive, naquele momento, a
sensação de se tratarem de olhos humanos do lado além do vidro. Miravam-me,
inquiriam-me algo.
Por estar
tão perto e pela surpresa, afastei-me um pouco e depois pus uma palma de cada
lado da face e me reaproximei. Vã tentativa, que o exterior, devido ao vidro,
de mim separado, escondia apenas a presença de um vulto a se distanciar. E um
pouco mais à frente, as pessoas... Alheias a tudo.