sábado, 30 de novembro de 2013

EU UM AVESSO

Itamar Assumpção



Um dia eu vou contar a história desse encontro, das conversas longas, da raridade escorrendo pela mesa, dos teus olhos de águia no palco cantando as minhas medalhas sobre o peito.
Eu falo dos teus cabelos, e eu lembro.
Eu falo dos teus olhos fartos, e eu lembro.
Toda aquela imponente alucinação era uma forma de grandeza, uma impressionante forma delicada pressionando a minha pele, envolvendo a tua língua num espetáculo que em uma hora esvaziará o mundo para passar o corpo, para deixar o corpo passar, para escrever ininteligível.
Uma linguagem manchada de sangue e de pus é o que precisamos comer no chá das cinco e provavelmente esse chá já foi servido em becos e inundações.


Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Ela é tudo que me sobra
Viver vai ser a nossa última obra

Composição: Itamar Assumpção e Paulo Leminski





domingo, 24 de novembro de 2013

A NECESSIDADE SUTIL DA MORTE


Imagem do documentário "Manifesto Macumbacyber"



A sabedoria está na cor dos olhos. Ele estava incapaz de discernir entre as sensações na pele por excesso de êxtase. Seria um final aparente de um aparente arfar contrito do peito.
Contemplou a sala vazia e a sua vida como se dera até ali, metade fosso, a outra metade as próprias divagações – transporia o muro, seria algo mais profundo que o negro, tornaria-se uma profundidade torturante, inteiro.
Ele pouco a pouco se perdia, não reencontraria-se na senda, suavemente deposto, suavemente banido pela rosa e pela inclemência dos espinhos. A sala vazia, o mundo apagou-se, as cadeiras à frente estendidas num campo de vaidades sutil. Se levantaria e construiria o novo, o algo que se conjugasse às sensações de si pelo mover-se do momento - não, impossível seria erigir algo diferente, além do íntimo ser.
Estava cansado, e as sombras acentuavam ainda mais a aparência extenuada de seus vícios, paixões em pulsação plena pelo corpo, prazeres confundidos com as intermitências do fosso. Estava ali como esteve em outros lugares de recordação hesitante, à beira de palpáveis horizontes, como fora anterior ao surgimento das hostes que o honrariam na batalha.
Era limitado, era repleto de curvas seu caráter, e a consciência do poder absoluto que aquela certeza possuía o impulsionava ao sangue derramado sobre as cadeiras próximas. Mas o imo líquido não sobressairia em contraste com a quantidade de cadeiras revestidas em couro negro, sua vida, sucessão interrompida de sentidos a espraiar-se.
Morreria, aos poucos e só, como numa câmara escura, abrangeria na proximidade daquela profecia todo o espaço num abraço inteiro de dúvida. Seu orgulho íntimo, poder morrer sangrando - finda a vida, findo o ar e o peso contido no ar -, aspirar o cheiro coagulado do vermelho. Ambição acima das outras, inclusive das que trouxera para compartilhar da fugacidade do minuto.
Preso ao movimento dos olhos voltados para o teto, o que restava ainda ser riscado? O que caberia de compreensível na imensidão tonitruante do universo? Possivelmente a noite era sustentáculo da sua necessidade inútil de ausências, fraternidade sensível entre ele e a una certeza presente na sala.
Amplo, de tonalidade soturna e incongruências várias, seu coração quase não aguenta mais - a calma. Logo virá um despertar.
Não, ele não poderia estar só. Agora, morto, na extensão da palma da mão um líquido viscoso, um escorrer sobre tudo, uma imensa visão.


Manifesto Macumbacyber


domingo, 17 de novembro de 2013

UMVAZIOCHEIODEPALAVRAS

Foto de Steve Mccurry



A criança brinca de chutar o pó, joga com uma potência desconhecida que flutua e se desfaz. Ela guarda nas mãos uma iluminescência que acende e volta a apagar-se sem motivo algum.
Ela está parada, corre, entra por uma porta, sai por outra porta, se esconde.
Um cachorro parado tem um olhar perdido para o nada como uma efígie.
Por uma árvore cinza o vento passa.
Em breve, uma prata fina escorrerá do céu e quebrará no asfalto.
Em breve, as grades serão corroídas pela ferrugem e a água cobrirá o mundo de lâmpadas trincadas e objetos perdidos.



domingo, 10 de novembro de 2013

ELA PASSOU PELO ESPELHO

Brillo Interno, de Cintia Fournier


Ela passou pelo espelho, arrumou o cabelo, desaprovou a blusa, mas o que fazer? Tinha que sair agora.
Ela passou pelo espelho, percebeu uma sombra nas rugas da testa e na marca dos olhos, arrumou a blusa, desaprovou o cabelo, mas o que fazer? Tinha que sair agora.
Ela passou pelo espelho, percebeu uma sombra no peito e a espalhou pelas marcas da testa e pelas rugas dos olhos, trocou a blusa, soltou o cabelo, mas o que fazer?
Sair agora.

domingo, 3 de novembro de 2013

FEITO PRA ACABAR

Foto de Limay Uribe Ruberti



Apareceste lendo Leminski numa tarde de sexta-feira. Meu Deus, quem lê Leminki num fim de tarde? Meu olhar subia e aos poucos deslizava por teu corpo parando ao seu bel-prazer aonde quisesse.
Te vi fechar o livro, a parada que desceste, perto de uma capela azul. Não guardei teu nome, não guardei tua língua, mas a tua presença em mim depois daquele doce cataclismo me intumesceu. Ficou inscrita na minha pele por dias e noites, que as boas intenções de nenhum matrimônio puderam apaziguar. 
Se vou te ver ao menos uma segunda vez?
Não sei se a tua presença será mais viva que as tuas mãos nas páginas de Leminski.