domingo, 29 de junho de 2014

FIO DESENCAPADO



 
Escultura de Anders Krisár


Fio desencapado.

Água rastejando pelo chão

Nossos vidros repercutindo a luz em pontas afiadas

Algo se prolonga no fio tênue passando pela mão, cada vez mais rápido pairando o calor e o relâmpago

Eu sofro a tua ânsia eu sofro o teu nojo por esses meandros particulares e portas cerradas.

E a navalha passa e o rio passa também em duas consequências invisíveis e tão presentes

Para emergir 
enterro os braços em agulhas e mergulho em farpas finas

luminescentes




sábado, 21 de junho de 2014

SALA DE ESPELHOS NÚMERO DOIS



 
Foto da serie "Espelho quebrado, céu do entardecer", de Bing Wrigth
   
Sondou a própria alma em busca de reflexos distorcidos, imagens destoantes, oscilações. Embora em si soubesse que nada poderia ser vislumbrado de seus olhos, restava-lhe apenas a ausência de salvação. Sentado, sua vontade percorria cada ponto como se os tocasse com a ponta dos dedos. Limitado, sua vontade era feita ao mesmo tempo de asas e correntes, de estar entregue ao voo e permanecer pregado ao chão. Percebeu que não estava só, que outros o acompanhavam no abismo, na contida tendência de seus gestos.

Era ele e outras pessoas na sala de espera. A vida impõe senhas impossíveis. Ainda assim ele esperava a sua vez na sala, como todos os outros, preparados ou não.

Sussurros emanavam da cena congelada. Uma mulher a folhear uma revista, e a cada fotografia, a cada atenção voltada àquelas cenas frias iam movimentos de melancolia suspensa e de cansaços. 
Outra está a assistir a televisão  pregada na parede e que se ouve mal. O som assim posto salva da lucidez a quantidade de vazios capazes de acordar durante a extensão de silêncios da espera. 
Naquela sala, naquele agora pleno de fugacidade, habitam vidas milimétricas, de horário marcado, de espírito marcado.

Enquanto ele, dono dos olhos suspensos, mirava a ordenação aparente dos nomes e a iminência de um chamado.


sábado, 14 de junho de 2014

A EXISTÊNCIA DA CHAMA



Foto de autor desconhecido




O interruptor mostrava seu feixe incandescente na penumbra. A hora logo se aproximaria. Viria segundo por segundo como numa clepsidra o hálito úmido da hora, sem surpresas, igual sorte de todas as manhãs, acordar durante a faixa morta da noite e dar de cara com o tempo. Uma coisa escondida no espaço entre os ponteiros reforçava a penumbra e a massa pálida do dia. Ele todas as noites antes de dormir em sua cabeça ia até o relógio e atrasava uma, duas horas da máquina, que assim permanecia pendurada. Acima do tempo a máquina vazia do tempo.

É, vem a manhã. Nada o faria perder o acréscimo sutil, a suspensão das sombras, o retorno dos seres as suas utilidades. Das horas mortas o fim. Silêncio, o primeiro tédio do dia. E vinha risonho e longínquo como o bom dia dos locutores das rádios comunitárias. Morava num quarto e sala desarrumado, onde as infiltrações do teto se conjugavam à sujeira das paredes nunca pintadas. Era incrustada na parede central que a janela gradeada mostrava o surgimento em meio às demandas e a fumaça. Ele, contudo permaneceria em sua cama desconfortável à espera.

A madrugada se perdia no lugar. A memória não sabia por quais labirintos andava, talvez na indistinção. As sombras se recolhiam. Cada coisa retornava a sua condição. A parede úmida, o relógio atrasado.