domingo, 11 de julho de 2010

FLOR PRIMEVA



Eulália te via tão pequena, circunscrita ao espaço de teus sentimentos obtusos. Assim, o avesso de si mesma, contraída num canto. Costumas transcrever para o caderno de capa-dura colorida as tuas sensações movidas do pó, mas nada aguarda a tua paciente meditação nas oscilações da calçada ou no asfalto negro da rua, estás muda Eulália, muda.
Mas do pó compreendias somente aquele que estava a encobrir a imensa superfície de tudo, teu íntimo ser em labirinto, teu incômodo cotidiano pelos que não respeitavam o silêncio que os seres necessitam para dirimir-se.
Interposto o limite, só tu para permanecer sentada no limite, quando tua compaixão por si mesma se elevava maior e se convertia em teu deleite, admiração de uma vasta vida inteira o estar voltada para si, como se após as próprias vísceras tivesses que ingerir também alma e sacrifício.
Porque te observei, Eulália, teu andar esquecido, tua fala esmagada de mundo, o gosto inconcebível do ar translúcido profundamente em que sentias tua própria dissolução. Irônico e único ter esse que te pertencia, apenas o ar cortante das manhãs, feito lâmina, sim, eram as manhãs, mas isso te conduzia.
E agora sentada no pátio, sofrendo em demasia o mínimo olhar atento, consumida por silêncios vários, perturbadores, te encontravas obcecada por certa felicidade coberta de sangue. Olhando as formigas dispersas no chão pensaste que poderias atar teu destino ao delas, o de simplesmente procurar sem rumo, o nada. Caderno repleto e livros ao colo, a possibilidade de perceber teus olhos calados, tuas mãos fixas evitando derramar-se era o que eu mais desejava tomar da tua existência inerte, recriada por minha fatal necessidade de encontrar-me apenas naquilo que observo e que sinto.
Sofrias, nem que fosse pelo grito e pela lágrima relutantes, Eulália, teus cabelos vermelhos, teus óculos de haste negra, tuas mãos laceradas de frio. Às vezes parecias fenecer em meio à luz inevitável.
Estava contigo à espera do momento, desabrochar. Enquanto isso teus dias eram um anular-se em cinza e ausências; já pouco de ti sabias, ou do quanto que te restaria depois do latejar da espera.
Te arrumas, a posição do corpo começa a te incomodar, incessante brilho, as palavras começam a vir repetidas, desconexas. A mente exausta força um gesto novo, com os olhos voltados ainda pro chão. Miravas a longa superfície da espera recortada em fragmentos grandes e pequenos de leveza e fugacidade. O sinal logo tocaria, mas até quando?
Já desce de teus olhos, Eulália, lágrima primeva, única lágrima que limpas com um toque, como se teu desejo fosse prolongar o risco quieto da existência – ingênua, teus olhos permanecem corroídos de dor.
Mesmo assim toda tua fragilidade, Eulália, compreende a presença do vidro trincado? Ou que o vidro necessita de ti para espelhar-se?

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